"O Triunfo dos Porcos" (1945), George Orwell - Resumo e Análise COMPLETA da obra

O Triunfo dos Porcos (Animal Farm) - George Orwell, 1945

Durante muito tempo, a Quinta do Solar fora um lugar relativamente feliz. Embora o Sr. Jones fosse um mau agricultor, os animais tinham sempre o que comer e, quando tinham sorte, até podiam viver uns bons e felizes anos. Contudo, após enfrentar alguns problemas de ordem pessoal, Jones era agora um alcoólico, e os maus tratos aos animais eram uma constante. Até que, um dia, o mais velho dos porcos, Major, anuncia a revolução que está por vir: 

Não é, pois, absolutamente claro, camaradas, que todas as misérias que sofremos são resultado da tirania dos seres humanos? Apenas livrando-nos do Homem é que o produto do nosso trabalho será nosso. Quase do dia para a noite, podemos tornar-nos ricos e livres. Que devemos pois fazer? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para destronar a raça humana! Esta é a mensagem que vos dirijo, camaradas! Rebelião!

Este discurso apaixonante de Major abre o caminho à revolução que estava por vir. E é esta fábula de Orwell que acompanha todo o seu trajeto, desde a promessa de uma sociedade igualitária e revolucionária à trágica instauração de um regime totalitário e opressor.


Personagens Principais

Velho Major – Sentindo que a sua vida está prestes a chegar ao fim, o Velho Major reúne todos os animais da Quinta do Solar a fim de lançar as bases da corrente política que viria a ser chamada “Animalismo”. O Animalismo prega uma sociedade onde todos os animais são iguais e estão livres da opressão dos seres humanos, sendo donos dos seus próprios produtos. Três noites depois de introduzir aos seus colegas a rebelião que estava iminente, o porco morre. O Velho Major é uma combinação alegórica de Karl Marx e Vladimir Lenin.

Napoleão - É, a par de Snowball, o porco mais inteligente da quinta. Por esse motivo, após a revolução, são eles que assumem a liderança, apesar de estarem em constante desacordo. Napoleão, segundo consta no livro, anda sempre com outro porco, Squealer. Esta personagem, que a longo prazo prova ser um verdadeiro tirano, é a clara representação de Josef Stalin.

Snowball – Apesar de originalmente dividir a liderança da quinta com Napoleão, Snowball vai ganhando cada vez mais a preferência dos outros animais e tornando-se o verdadeiro líder. É totalmente devoto ao Animalismo e às ideias do Velho Major. Seria o retrato de Leon Trotsky.

Squealer – Trata-se de um porco pequeno e gordo que mantém grande proximidade a Napoleão. Durante os dias de tirania, Squealer torna-se um porco muito importante, devido ao seu grande dom de oratória. Desempenha um papel semelhante ao de Vyacheslav Molotov no governo de Stalin.

Sr Jones – Depois de atravessar problemas pessoais, incluindo casos judiciais, torna-se um extremo consumidor de álcool. Vive com a esposa na Quinta do Solar, a sua fonte de rendimento. Depois de ter perdido a quinta mediante a revolução, Jones muda-se para outra parte do país e acaba por morrer, anos depois, num asilo para alcoólicos. É a alegoria de Nicolau II, o último czar russo.

Boxer – Apesar de a inteligência não ser o seu forte, o cavalo Boxer é o maior e mais forte entre os animais. Os seus 1,80m, aliados a um incessante espírito de sacrifício, fazem dele um excelente trabalhador. Eis o seu lema pessoal: Vou trabalhar mais. Mais tarde, durante o regime de Napoleão, acrescenta outro lema: Napoleão tem sempre razão. Apenas sabe as primeiras quatro letras do alfabeto. Trata-se, provavelmente, da representação de Alexey Stakhanov.

Mollie – Mollie é o único animal da quinta que se opõe à revolução, mostrando nitidamente apreciar o domínio humano. É uma égua preguiçosa e sabe apenas as letras que compõe o seu nome. Pouco tempo depois de os animais tomarem controlo sobre a Quinta do Solar, Mollie foge para outra quinta. Pode ser comparada àqueles que abandonaram a Rússia depois da queda do czar.

Clover – Depois da saída de Mollie, torna-se a única égua na quinta. Demonstra especiais carinho e preocupação por Boxer, recomendando-lhe mais de uma vez que não se esforce tanto a trabalhar. Aparenta ser ligeiramente mais perspicaz do que os seus colegas mais próximos, já que, segundo o que dá a entender, é capaz de detetar as fraudes e mentiras de Napoleão e Squealer. Além disso, sabe todas as letras do alfabeto, apesar de não conseguir ler.

Benjamim – O burro Benjamim é cético, pessimista e calado. Nunca se ri, uma vez que, segundo este, não há nada que lhe dê vontade de rir. Também nunca lê, apesar de ser capaz de o fazer, porque não há nada que mereça ser lido, de acordo com este. Quando lhe questionam acerca da falta de crença que possui na revolução, Benjamim responde: Nenhum de vocês já viu um burro morto, ou seja, argumentado estar vivo há demasiado tempo para saber que nada mais não será do que uma desilusão. Não cai em populismos e demagogias, estando sempre acompanhado da tese «A vida vai continuar como sempre – isto é, mal». Sugere-se que o burro Benjamim tenha, na sua personalidade, um toque do próprio autor.


Resumo da História

Depois da morte do Velho Major, três noites após o seu eloquente discurso, a vida continuou a mesma – isto é, má, como diria Benjamim. No entanto, o hino “Animais de Inglaterra”, ensinado por Major aos restantes animais, ainda ecoava timidamente pela quinta.

Animais da Inglaterra, animais da Irlanda,

Animais de todas as terras e climas,

Escutem estas minhas alegres notícias

De um dourado tempo futuro

(...)

A verdade é que as criaturas não se tinham esquecido do futuro revolucionário que lhes prometeu o Velho Major. Era um futuro tão melhor do que o presente em que eles viviam que decerto era difícil esquecer. As más notícias é que o Sr. Jones, não satisfeito com os maus tratos diários que exercia sobre os animais (exceto ao corvo Moses, o seu animal predileto), decidiu ficar dias a fio sem lhes dar quaisquer rações. Tendo em conta a fome que passavam, a única opção “lógica” seria derrubar a porta do armazém que continha cereais. Foi exatamente isso que uma das vacas fez, recorrendo aos seus poderosos chifres. Os animais mostravam-se satisfeitos por finalmente estarem a comer, mas a tal “opção lógica” acabou por ter o seu revés. Jones e os seus quatro homens foram até ao armazém e logo começaram a distribuir chicoteadas aos animais. O que não esperavam é que os animais imediatamente se dirigessem violentamente aos agressores, algo que nunca antes havia acontecido.

Jones e os seus homens viram-se golpeados e pisados por todos os lados e

sentiram-se impotentes para dominar a situação. Nunca tinham visto agir

assim criaturas que costumavam castigar à vontade.

A violência aplicada pelos animais foi tal que Jones e os seus homens foram obrigados a abandonar a quinta, seguidos da Sra. Jones, que se escapuliu o mais rápido que pôde da casa da quinta, onde ela e o marido viviam. Chegara, por fim, a rebelião.

Agora que Jones e os humanos tinham saído, nada havia sobrado senão um vasto território sem regras, todo à disposição dos animais. Eles decidem, portanto, começar a estabelecer-se como donos daquela quinta. Todos concordam em não usar a casa de Jones, reservando-lhe apenas a função de museu. Também mudam a designação da quinta: já não é “Quinta do Solar”, mas sim “Quinta dos Animais”. Snowball grava na parede do celeiro os Sete Mandamentos do Animalismo, com base nos ideais proferidos por Major naquela noite.

  1.  Tudo o que anda sobre dois pés é inimigo.
  2.  Tudo o que anda sobre quatro patas, ou tem asas, é amigo.
  3.  Nenhum animal usará roupa.
  4.  Nenhum animal dormirá numa cama.
  5.  Nenhum animal beberá álcool.
  6.  Nenhum animal matará outro animal.
  7.  Todos os animais são iguais.

Apesar de ter concretizado a proeza de resumir toda uma ideologia em apenas sete curtos mandamentos, Snowball foi confrontado com o analfabetismo de muitos animais e, por esse motivo, resumiu-lhes o Animalismo em apenas um princípio: Quatro pernas bom, duas pernas mau.

Enquanto Snowball ia dando o seu melhor na administração da quinta, Napoleão cometeu um ato estranho. As cadelas Jessie e Bluebell tinham dado à luz, entre elas, nove cachorros. Napoleão imediatamente roubou-os, declarando-se responsável pela sua educação. Escondeu-os num sótão e eles foram rapidamente esquecidos. Também por essa altura outra polémica o incluiu. O leite que as vacas produziam quando eram ordenhadas era armazenado em baldes, sendo os porcos os responsáveis pela sua gestão. Todavia, os animais não voltavam a observar o leite, o que lhes foi causando confusão. Essa confusão foi cessada quando estes descobriram que o leite andava a ser usado na ração dos porcos. Foi também dada uma ordem para que todas as maçãs fossem atribuídas aos porcos. Esta repartição injusta dos recursos motivou descontentamento em alguns animais e até surpresa, já que o próprio Snowball concordava com estas medidas. Mesmo assim, Squealer foi enviado para sanar todas as dúvidas aos animais:

O leite e as maçãs (e isto, camaradas, é comprovado pela ciência) contêm 

substâncias absolutamente necessárias para o bem-estar do porco. Nós, 

porcos, trabalhamos com o cérebro. Toda a organização e gestão desta 

quinta depende de nós. (...) Sabem o que sucederia se nós porcos não 

cumpríssemos o nosso dever? Jones voltaria para a quinta! (...) com 

certeza não há aí entre vós um só que gostasse de ver Jones regressar.


Contudo, como era de prever, Jones não desistira daquela que era sua propriedade (ou que julgava ser). Pouco tempo depois, voltou para reconquistar o que acreditava ainda ser seu. Mas desta vez contava com reforços, estando acompanhado de um grupo de cerca de uma dezena de homens. Todos eles levavam paus, exceto Jones, que se fazia acompanhar de uma caçadeira. Com uma estratégia engenhosa e um grande heroísmo da parte dos animais, principalmente de Snowball e Boxer, a Quinta dos Animais manteve o seu nome e Jones saiu, mais uma vez, “de mãos vazias”.

De regresso ao banal quotidiano, os animais voltaram a trabalhar arduamente, de modo a garantir a tão desejada prosperidade da quinta. Snowball, particularmente, dedicava muito esforço a um projeto ambicioso que estava a conceber. A sua intenção era que fosse construído um moinho de vento, que forneceria energia elétrica à quinta. Essa e outras máquinas que Snowball pretendia ver construídas automatizariam o trabalho dos animais – a longo prazo, teriam apenas de trabalhar três dias por semana. Em contrapartida, até lá, teriam de passar um ano a trabalhar arduamente e a comer menos do que certamente desejariam. Napoleão era abertamente contra a construção do moinho. Argumentava que os animais morreriam de fome ao tentar construí-lo e que, por isso, deveriam dedicar-se à produção de alimentos. Sendo assim, a quinta dividiu-se relativamente a qual projeto deveriam escolher... exceto Benjamim:

Benjamim era o único que se mantinha neutro: não se inclinava para uma fação nem 

para a outra. Recusava-se a acreditar que viesse a haver mais comida ou que o 

moinho poupasse trabalho. Com moinho ou sem moinho, disse ele, a vida havia de 

continuar como sempre – isto é, mal.


No dia da grande decisão, os animais reuniram-se no grande celeiro para eleger o projeto que seria adotado. Antes de se proceder aos votos, Snowball fez um discurso apaixonante a favor da construção do moinho. Não havia quaisquer dúvidas - a sua eloquência conquistara-os. Napoleão, por sua vez, fez apenas questão de dizer aos camaradas para não aprovarem a construção do moinho, fazendo um discurso de menos de trinta segundos. Parecia não estar sequer interessado no debate. Snowball venceria as eleições, isso era garantido.

Contudo, antes que se desse início ao registo dos votos, Napoleão paralisou os animais com um guincho que nunca ninguém até então tinha ouvido. De súbito, nove enormes cães invadiram o celeiro, fazendo-se dirigir a Snowball. Este, percebendo o perigo que o cercava, fugiu aos cães da forma que pôde. Contudo, os cães não o largaram até este se ter distanciado das redondezas da quinta. Nenhum animal o voltou a ver.

Assim que os cães regressam ao celeiro, Napoleão toma a palavra e autoproclama-se chefe de todos os animais, acusando Snowball de ter sido, durante aquele tempo todo, um traidor. A sua primeira medida, enquanto líder máximo da quinta, é cancelar os debates de domingo de manhã, devido à sua “inutilidade”. Quatro jovens porcos tentam contestar esta decisão, mas são imediatamente silenciados pelos cães, que os intimidam com rosnares assustadores. Além disso, Napoleão anuncia que as decisões gerais da quinta já não serão votadas por todos os animais, passando a dizer respeito apenas a um comité meramente composto por porcos.

Três semanas depois da expulsão de Snowball, Napoleão anunciou, para surpresa de todos os animais, a construção do moinho de vento. De acordo com as suas previsões, esta obra levaria cerca de dois anos até ser concluída. Squealer tratou de explicar aos animais que Napoleão nunca fora, de facto, contra a construção do moinho. A forma como fingiu opor-se à sua construção tratou-se de uma simples estratégia para se ver livre de Snowball, que era “um indivíduo perigoso e uma má influência”.

Todo o ano os animais trabalharam como escravos. Mas eram felizes no seu 

trabalho; não se pouparam a esforços e sacrifícios, plenamente conscientes de 

que tudo o que faziam era para seu benefício e dos da sua espécie que viriam 

depois deles e não em proveito de um bando de seres humanos inúteis e gatunos.


Devido à escassez de alguns materiais que eram necessários para construir o moinho de vento, Napoleão comunicou aos animais que, dali em diante, a Quinta dos Animais realizaria trocas com quintas vizinhas; mas sem qualquer tipo de interesse comercial, segundo este. O chefe tratou também de avisar às galinhas que, num futuro próximo, poderiam ver os seus ovos serem vendidos, de forma a que a quinta ganhasse mais dinheiro. Os animais ficaram confusos. Naquela longínqua noite, não havia o falecido Major dito que nenhum animal deveria negociar, ganhar dinheiro ou ter relações com seres humanos? Squealer, no entanto, desfez esse mal-entendido:

Vocês estão certos de que isso não foi um sonho, camaradas? 

Têm algum registo dessa resolução? Está escrita nalgum lado?

De facto, não estava. Os animais concluíram, então, que se tinham enganado.

Pouco tempo depois, os porcos mudaram-se para a casa da quinta e lá se instalaram, ao contrário do que havia sido inicialmente estipulado. Não só faziam uso de todos os compartimentos da casa como também possuíam a regalia de dormir em camas. Perturbados, os animais foram à parede do celeiro verificar os Sete Mandamentos. Ao lá chegarem, coube à cabra Muriel ler o Quarto Mandamento: “Nenhum animal dormirá numa cama com lençóis”.

Squealer depois lhes explicou que nunca houvera uma regra contra as camas. Até porque, segundo este, os lençóis é que se tratavam de uma invenção humana; a cama não. “Um monte de palha num estábulo é uma cama, se virmos bem”. Como os porcos dormiam debaixo de cobertores, não infringiam qualquer regra. Squealer concluiu o seu esclarecimento da seguinte forma:

Vocês certamente não pretendem privar-nos do nosso repouso, pois não, camaradas? 

Nem querem que fiquemos demasiado cansados para levar a cabo os nossos deveres? 

Seguramente nenhum de vocês quer Jones de volta?

Nada mais foi dito a respeito de os porcos dormirem em camas na casa da quinta.

Numa tempestuosa noite de novembro, um temporal provocou severos estragos à quinta. O maior deles, e que desesperou todos os animais, foi a destruição do moinho de vento, que já se encontrava “meio acabado”. Napoleão considerou que só Snowball poderia ter cometido tal maldade, e prometeu a “Medalha de Heroísmo de Segunda Classe” a quem o capturasse vivo, para que depois fosse condenado à morte. Também determinou que os animais começassem imediatamente a reconstruir o moinho de vento – e assim o fizeram.

Seguiu-se então um período de fome implacável na quinta, acompanhada de uma rotina de trabalho constante. Isto não passou despercebido aos invejosos donos das outras quintas, que logo começaram a lançar rumores de que todos os bichos da Quinta dos Animais estavam a morrer de fome e doença e que, inclusivamente, praticavam o infanticídio e o canibalismo. Portanto, Napoleão decidiu usar o Sr. Whymper, intermediário nos seus negócios com outras quintas, para fazer transparecer uma imagem diferente. Sempre que visitava a quinta, Napoleão montava cenários que indicavam que a Quinta dos Animais era abundante em alimentos e que os animais viviam bem.

Certo domingo de manhã, Napoleão anunciou que tinha aceitado um contrato, por intermédio do Sr. Whymper, para a venda de quatrocentos ovos por semana. Mesmo tendo sido previamente avisadas, a verdade é que as galinhas nunca acreditaram que isso viria mesmo a acontecer. De imediato, fizeram um grande alarido e provocaram aquilo que podia ser considerado o mais próximo a uma revolta desde a revolução que expulsou o Sr. Jones. Sendo assim, Napoleão ordenou que não fossem dadas rações às galinhas e avisou que qualquer animal que lhes desse sequer um grão de cereal seria morto. As galinhas resistiram cinco dias, até que capitularam e concordaram em ceder os seus ovos. Entretanto, nove delas morreram (de coccidiose, segundo constava). O acordo feito com o Sr. Whymper, dos quatrocentos ovos semanais, começou a ser cumprido.

Um dia, ao final da tarde, Napoleão ordenou que todos os animais se reunissem. Ostentava duas medalhas que havia atribuído a si mesmo e, como habitual, estava acompanhado do seu exército de cães. Estes começaram a arrastar, pelas orelhas, quatro jovens porcos – os mesmos que protestaram aquando do cancelamento dos debates de domingo de manhã. Eram eles o centro da reunião. Napoleão ordenou-lhes que confessassem os seus crimes. Os porcos declararam então que se tinham mantido em contacto com Snowball desde a sua expulsão, tendo colaborado na destruição do moinho. Disseram também que, durante aquele tempo todo, Snowball não fora nada mais do que um espião de Jones. Quando acabaram a confissão, os cães despedaçaram-lhes a garganta. Posteriormente, foi a vez de seis galinhas, três ovelhas e um ganso confessarem os seus crimes. A todos eles foi reservado o mesmo destino. No fim da reunião, uma pilha de cadáveres jazia aos pés de Napoleão.

Como forma de lamento pelo sucedido, os animais entoaram, em grupo, o hino “Animais de Inglaterra”, mas foram interrompidos por Squealer, que anunciou, por ordem de Napoleão, a abolição da música. Os animais ficaram incrédulos. Squealer depois explicou que essa se tratava de uma canção que incitava a revolução e que manifestava a esperança em dias melhores – o que não fazia sentido, já que a revolução já tinha chegado ao fim (a execução dos “traidores” tinha sido o ato final) e não era necessário expressar o desejo por uma sociedade melhor, uma vez que essa já estava estabelecida.

Poucos dias depois, à procura de consultar o Sexto Mandamento, que julgavam proibir que um animal matasse outro animal, os animais deslocaram-se ao celeiro. Ao lá chegar, Muriel leu: “Nenhum animal matará outro animal sem causa.”

O processo de reconstrução do moinho estava a ser muito exigente para os animais. Por vezes, até admitiam trabalhar mais e comer menos do que no tempo de Jones. Contudo, aos domingos de manhã, Squealer lia extensas tiras de papel que comprovavam que a produção de cada cultura na quinta tinha aumentado em 200%, 300% ou 500%, o que fazia os animais mudarem de ideias. Por essa altura, Napoleão já raramente fazia aparições públicas, usando Squealer como intermediário para transmitir as suas ordens. Também se começou a tratá-lo de forma mais formal, como “nosso líder, o camarada Napoleão”, ao invés de apenas “Napoleão”. Os aparentes milagres que aconteciam na quinta eram sempre obra do grande Líder (isto segundo as galinhas, por exemplo, que, quando conseguiam pôr ovos, atribuíam tal feito a Napoleão). Foi também composto um poema, intitulado “Camarada Napoleão”, que homenageava o Líder e que logo passou a ser o tema oficial da Quinta dos Animais:

Amigo do órfão!

Fonte de felicidade!

Senhor da lavagem! Oh, como minha alma

Arde quando contemplo

Tens olhos calmos e imperiosos,

Como o sol no céu,

Camarada Napoleão!

(…)


Algum tempo depois, mais três galinhas foram executadas, após confessarem terem sido inspiradas por Snowball a tentar o assassinato de Napoleão. 

Meses se passaram, até que finalmente se concretizou o segundo ataque à Quinta dos Animais. Desta vez, a frente humana fazia-se valer de um conjunto de quinze homens, com seis caçadeiras entre eles. Entraram impiedosamente e rapidamente dominaram a maior parte do território da quinta. Frederick, agricultor de uma quinta rival e líder da invasão, ia tentando derrubar o moinho de vento, com a ajuda dos seus homens. Isto tranquilizou, por alguns instantes, os animais, que estavam convencidos de que o moinho era indestrutível. No entanto, de súbito, ouviu-se uma explosão. Os animais olharam e avistaram uma grande nuvem negra no local onde normalmente estava erguido o moinho. Os homens haviam usado pólvora para o destruir. Dominados pela fúria, os animais partiram para cima dos seres humanos. O combate foi violento e sangrento. Ao contrário da Batalha do Estábulo, esta guerra causou muitas mortes e feridos. Mas, no fim, os animais foram capazes de expulsar os humanos e mantiveram a quinta em sua posse.

Dias mais tarde, após terem descoberto uma caixa de uísque, os porcos fizeram uma grande festa, cujo ruído ultrapassava as paredes da casa da quinta. No dia seguinte, foi para grande tristeza dos animais que Squealer anunciou que Napoleão estava doente e prestes a morrer. Mas, milagrosamente, o grande Líder foi capaz de recuperar e regressou ao trabalho. Cerca de uma semana depois, um estranho incidente aconteceu. Os animais apanharam Squealer atordoado e estendido no chão, em plena madrugada, em frente à parede onde estavam escritos os Sete Mandamentos. Ao seu lado via-se uma lanterna, um pincel, uma lata de tinta branca e uma escada partida em dois bocados. Nenhum animal entendeu o que isto queria dizer, exceto Benjamim, que parecia ter compreendido o significado deste incidente, mas não disse nada. Dias depois, Muriel leu o Quinto Mandamento: “Nenhum animal beberá álcool em excesso.”

Nesse período, os animais encarregavam-se de construir, pela terceira vez, o moinho de vento. E Boxer, o animal mais trabalhador, recusava-se a ter um único dia de repouso, mesmo tendo uma grave fratura no casco, contraída na Batalha do Moinho. Apesar de estarem a passar por mais um inverno frio e miserável, os animais acreditavam estar melhor do que no tempo de Jones. Ou, pelo menos, era o que os dados transmitidos por Squealer garantiam:

Lendo-lhes números rapidamente numa voz esganiçada, provava-lhes em pormenor 

que tinham mais aveia, mais feno e mais nabos do que no tempo de Jones, que 

trabalhavam menos horas, que bebiam água de melhor qualidade, que viviam mais 

tempo, que uma proporção maior das suas crias sobrevivia à infância e que tinham 

mais palha nos estábulos e sofriam menos com as pulgas.


Napoleão decidiu dedicar-se à educação dos pequenos leitões. Ordenou que se construísse uma escola para eles e, enquanto isso, lecionava-os na cozinha da casa da quinta. Desencorajava-os a brincarem com os outros animais. Além disso, foi estabelecida uma norma que determinava que, sempre que um porco se encontrasse no caminho com um animal de outra espécie, era obrigado a desviar-se. Em abril do ano seguinte, foi proclamada, na Quinta dos Animais, uma república. Na primeira eleição, houve apenas um candidato - Napoleão - que foi eleito por unanimidade.

Apesar de eventualmente ter recuperado da fratura no casco, os esforços desmedidos de Boxer finalmente tiveram consequências. Certo dia, o cavalo foi encontrado estendido no chão, sem capacidade para se levantar. Tratavam-se de problemas nos pulmões - disse ele. Por isso, Squealer anunciou aos animais que Boxer seria levado para um hospital, a fim de ser tratado. Dias depois, uma cena inesperada aconteceu. Benjamim galopava à máxima velocidade e gritava a plenos pulmões: “Depressa! Depressa! Venham imediatamente! Estão a levar o Boxer!” Os animais seguiram o burro e encontraram Boxer, preso num atrelado, por isso começaram a despedir-se, em coro. Benjamim, desesperado, gritou: “Tolos! Vocês não veem o que está escrito nos lados do atrelado?” Eis que, mediante um silêncio brutal, Benjamim leu:

Alfred Simmonds, Matadouro e Fabrico de Cola, Willingdon. 

Negociante de Couro e Farinha de Ossos. Fornecedor de Canis.

O desespero dos animais foi instantâneo. Assim que o atrelado arrancou, correram como nunca antes, para não perder Boxer de vista. Enquanto isso, tentavam, de todos as formas e feitios, avisar o cavalo de que estava a ser levado para a morte. A certo ponto, Boxer compreendeu o que diziam e, por isso, usou toda a força disponível para sair do atrelado. Mas, infelizmente, a sua força abandonara-o. O veículo foi ganhando velocidade, até que, por fim, desapareceu. Boxer nunca mais foi visto.

Três dias depois, Squealer anunciou que Boxer morrera no hospital. Tinha estado com ele até ao último suspiro e as suas últimas palavras tinham sido “Napoleão tem sempre razão!”. Também tratou de desfazer o “mal-entendido” de que Boxer teria sido levado para um matadouro. Acontece que, segundo ele, o atrelado tinha sido propriedade de um magarefe, e que o veterinário ainda não tinha alterado o que estava escrito nas partes laterais.

Anos se passaram. A cabra Muriel morreu, tal como os cães Jessie, Bluebell e Pincher. Jones morreu num asilo de alcoólicos, noutra parte do país. Snowball fora esquecido. A quinta era agora composta por muitos novos animais - “trabalhadores, bons camaradas, mas muito estúpidos”. O moinho fora finalmente concluído e já se construía um segundo. Contudo, era usado para moer trigo e fazer dinheiro, e não para produzir energia elétrica, o que, segundo Snowball, lhes garantiria água quente, luz elétrica e apenas três dias de trabalho por semana. Napoleão denunciara estas ideias como contrárias aos princípios do Animalismo:

A verdadeira felicidade, dizia, consistia em trabalhar arduamente e viver frugalmente.

Num agradável fim de tarde de verão, um terrível relincho foi escutado por todos os animais. Assim que o relincho se repetiu, todos eles se juntaram no pátio. Era Clover. Assim que os animais avistaram a mesma cena que ela, ficaram igualmente chocados. Squealer andava sobre duas patas. Momentos depois, saiu da casa da quinta uma longa fila de porcos, todos eles andando sobre as patas traseiras. Por fim, apareceu Napoleão (também ele a andar sobre duas patas), que se fazia acompanhar dos cães e levava um chicote numa das patas. Fez-se um silêncio ensurdecedor. Os animais sentiram que, apesar do hábito adquirido de nunca reclamarem e do pavor que lhes provocavam os cães, podiam ter um momento para protestar. Até que, nesse instante, as ovelhas começaram a gritar:

Quatro pernas bom, duas pernas melhor!

Isto permitiu que os porcos regressassem à casa da quinta, sem que os animais pronunciassem sequer uma palavra. Clover e Benjamim deslocaram-se até à parede dos Sete Mandamentos. Pela primeira vez, o burro concordou em ler o que estava escrito. Mas, agora, não havia nada senão apenas um único mandamento:

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS

MAS ALGUNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OUTROS


No dia seguinte, os porcos que supervisionavam o trabalho dos animais tinham um chicote nas patas. Tinham também comprado um rádio, instalado telefone e assinado alguns jornais. Foram vistos a usar roupas anteriormente pertencentes ao Sr. Jones.

Uma semana depois, os porcos receberam alguns agricultores de quintas vizinhas. À noite, faziam uma barulhenta festa na casa da quinta, à qual os animais assistiam, sorrateiramente. Foram trocados elogios e discursos bastante simpáticos. O Sr. Pilkington, dono da quinta de Foxwood, destacou a disciplina exercida por Napoleão na Quinta dos Animais, afirmando acreditar que em nenhuma outra quinta os animais trabalhavam tanto e recebiam tão pouco. Napoleão agradeceu os elogios e aproveitou para anunciar uma novidade: dali em diante, a Quinta dos Animais passaria a chamar-se “Quinta do Solar”. Enquanto isso, os animais observavam o que acontecia, mas não conseguiam deixar de notar que algo de estranho se passava:

O que seria que se tinha alterado na cara dos porcos? (…) 

Alguns tinham cinco queixos, alguns quatro, outros três. 

Mas o que seria que estava a desaparecer e a alterar-se?

Assim que o jogo de cartas entre porcos e humanos prosseguiu, os animais afastaram-se da casa da quinta. Contudo, ao ouvir aquilo que parecia ser uma grande discussão, regressaram à janela. Aparentemente, Napoleão e Pilkington tinham jogado, em simultâneo, um às de espadas.

Doze vozes furiosas gritavam e eram todas iguais. 

Não havia dúvidas sobre o que estava a acontecer às caras dos porcos. 

As criaturas lá fora olhavam de porco para homem, 

de homem para porco e novamente de porco para homem; 

mas já era impossível dizer qual era qual.

Fim



Análise


O autor

Nunca deixará de ser espantoso, se pensarmos bem, que uma mais das importantes obras de crítica política do século XX é nada mais, nada menos, do que uma fábula. Além disso, todo o contexto por trás de “O Triunfo dos Porcos” torna-se mais enigmático se analisarmos o homem por trás desta fantástica narrativa – a começar pelo seu nome. Eric Arthur Blair nasceu na Índia Britânica, em 1903, mas cedo se mudou para Inglaterra, com apenas um ano de idade. Como escritor, alcançou fama e reconhecimento mundiais sob o célebre pseudónimo “George Orwell”, que usou para denunciar o caráter vilanesco dos regimes totalitários, como o de Stalin na URSS. Publicou as duas grandes obras da sua carreira, “O Triunfo dos Porcos” (1945) e “1984” (1949), nos anos finais da sua vida. Viria a falecer em 1950, com apenas quarenta e seis anos de idade, vítima de uma tuberculose. Mediante a Guerra Civil Espanhola, conflito que se iniciou em 1936 e que terminou em 1939, Blair juntou-se a uma milícia de marxistas revolucionários não-estalinistas, fazendo parte da guerra. Isto influenciaria severamente as suas posteriores obras e motivou a escrita do livro “Homenagem à Catalunha” (1938), outro dos sucessos do autor, no qual conta as suas experiências em solo castelhano.


Velho Major e o seu simbolismo

O apaixonante discurso do Velho Major, ao abrir o enredo, é uma das minhas partes favoritas do livro. Aliás, todos os momentos em que são feitas alegorias que remetem à luta do proletariado face à opressão capitalista são, na minha opinião, brilhantes.

Não é, pois, absolutamente claro, camaradas, que todas as misérias que sofremos são 

resultado da tirania dos seres humanos? Apenas livrando-nos do Homem é que o produto 

do nosso trabalho será nosso. Quase do dia para a noite, podemos tornar-nos ricos 

e livres. Que devemos pois fazer? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para destronar 

a raça humana! Esta é a mensagem que vos dirijo, camaradas! Rebelião!


Jones e os seus homens viram-se golpeados e pisados por todos os lados e

sentiram-se impotentes para dominar a situação. Nunca tinham visto agir

assim criaturas que costumavam castigar à vontade.


O Velho Major, tal como fiz constar inicialmente, é uma combinação alegórica de Karl Marx e Vladimir Lenin. Foi ele o principal cérebro por trás do Animalismo, uma versão do comunismo adaptada à quinta. O seu correspondente humano, Marx, considerava injusto que os operários trabalhassem de forma extrema, auferindo ordenados míseros, e que mesmo assim não fossem donos daquilo que produziam. Os esforços soberbos que realizavam não eram para si, mas para os seus patrões - patrões estes que eram preguiçosos e que mais não faziam do que administrar o negócio (não eram eles que “metiam as mãos na massa”) e ver grandes lucros a caírem-lhes nos bolsos. Sendo assim, não é difícil deduzir que os ricos se tornassem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Talvez esse poder social e monetário tenha sido, outrora, conquistado por mérito, mas naquele momento pouco mérito restava. O poder era transferido de forma hereditária, com os ricos a oprimirem os pobres a cada geração que passava. Tratava-se de um ciclo sem fim, que era o espelho de uma sociedade na qual a mobilidade social era idêntica àquela que existia nas monarquias absolutas características do Antigo Regime. Apenas restava à classe proletária revoltar-se, a fim de colocar um ponto final a esta opressão. Este é um curto resumo da luta comunista, idealizada por Karl Marx. As semelhanças aos ideais de Major são, no mínimo, muitas.

Algo que não mencionei ao contar a história é que, após morrer, Major teve o seu crânio exposto, como uma espécie de monumento, sendo habitual que os animais lhe prestassem homenagem (no final do conto, na festa entre humanos e porcos, Napoleão anuncia que o crânio deixará de estar em exposição). Algo semelhante aconteceu com Vladimir Lenin. Até hoje, a Rússia suporta elevadas despesas para manter o seu corpo conservado e em exposição, no Mausoléu de Lenin, que é uma das principais atrações turísticas do país.

Aproveito para referir algo de que senti falta enquanto lia o livro: o culto prestado por Napoleão a Major (neste caso, a ausência deste). Este foi um estratagema utilizado por inúmeros ditadores, entre os quais o tão famoso Josef Stalin e o líder venezuelano Nicolás Maduro. O primeiro, durante o seu governo na União Soviética, dedicou-se a fazer homenagens e a exaltar a imagem de Vladimir Lenin. No fundo, era como se Stalin dissesse o seguinte:

Vocês (povo) adoram-no (Lenin).

Nós (eu e Lenin) éramos grandes amigos. Ele acha que sou o homem certo.

Logo, vocês devem adorar-me.

O presidente da República Bolivariana da Venezuela, por sua vez, aproveita toda e cada oportunidade para “endeusar” Hugo Chávez, o seu falecido antecessor. Alguns dos seus comentários chegam a beirar o ridículo, tendo uma vez dito que Chávez falou com ele na forma de pássaro e o abençoou para as eleições que estavam por vir (em 2013, quando se decidia o sucessor de Chávez). Portanto, tentar ao máximo “sugar” a reputação de passados líderes, adorados pelo povo, também pode ser incluída no vasto leque de engenhos utilizados por tiranos para atrair as massas. Por esse motivo, estranhei que Napoleão, no desenrolar na história, mal tenha mencionado Major, uma personagem que certamente poderia ter utilizado a seu favor, a fim de reforçar o seu poder, já que os animais o veneravam. Ainda que os princípios defendidos pelo velho porco fossem contrários aos que Napoleão verdadeiramente desejava ver implantados na quinta, teria sido extremamente fácil manipulá-los. Ainda assim, não deixa de ser uma pequena observação.


O opositor

Se há um Stalin, tem de haver um Trotsky. Snowball era um porco fiel aos princípios do Animalismo, tendo feito uso de toda a sua astúcia para tentar materializar a sociedade revolucionária que Major idealizara. Além disso, a sua relação com Napoleão acrescenta uma dinâmica interessante ao enredo e é responsável pelo grande plot twist da história - a expulsão de Snowball.

A dinâmica a que me refiro é referente ao facto de os dois porcos conjugarem aliança com rivalidade, eventualmente emergindo como as duas grandes forças antagónicas da quinta. Isso, por si só, já ilustra bem o processo de evolução da sociedade animalista. Inicialmente, estipulara-se que todos os animais teriam os mesmos direitos, mas o desenvolvimento da história determinou que dois deles batalhassem pela supremacia.

A partir daí, é possível discutir o que teria acontecido se o rumo do enredo tivesse sido diferente. E se Snowball, de alguma forma, tivesse levado a melhor sobre Napoleão? No fundo, isto é o mesmo que questionar se a União Soviética teria correspondido aos ideais marxistas caso não tivesse sido governada por um tirano. Este é um discurso característico daqueles que procuram defender o socialismo: “A culpa não foi do modelo de sociedade, mas sim da forma como foi implementado (ou, mais concretamente, de quem adquiriu e abusou do poder)”. Isto não deixa de ser verdade. No entanto, também não deixa de ser verdade que, em todos os estados de estrutura social baseada no marxismo, a opressão dos ricos sobre os pobres converteu-se numa opressão dos poderosos sobre os “não-poderosos”.

Eu tendo a crer que, com Snowball na posição de líder, isso não fosse diferente. E fundamento a minha crença com base em dois argumentos:

  1.  Quando um grupo bastante restrito de pessoas tem acesso a muito poder, tende a privilegiar-se quando o assunto é “distribuição de riqueza”; 
  2. O seguinte excerto: Entretanto, desvendou-se o mistério do destino que era dado ao leite. Soube-se que o misturavam todos os dias nas rações dos porcos. As primeiras maçãs começavam agora a amadurecer e a erva do pomar encontrava-se coberta de fruta caída. Os animais tinham assumido como coisa natural que esta fruta seria repartida igualmente por todos; um dia, porém, veio uma ordem para recolherem na casa dos arreios, para uso dos porcos, toda a fruta caída. Perante isto, alguns dos outros animais murmuraram, mas sem resultados. Todos os porcos concordavam plenamente neste ponto, até Snowball e Napoleão. (página 45) - que, do meu ponto de vista, é Orwell a comprovar exatamente aquilo que estou a tentar fundamentar.

Talvez se possa pensar: “Se calhar Snowball abusaria do poder, mas certamente não ordenaria execuções ou coisas do tipo”. Sim, é certo que ações desse tipo não faziam jus à natureza de Snowball (pelo menos à que nos foi dada a conhecer). Contudo, não se sabe se faziam ou não parte da natureza de Napoleão - o que é certo é que acabou por fazê-las. Fê-las para solidificar aquilo que mais valorizava – o seu poder (estou convencido de que não as fez por puro prazer). Por esse motivo, acredito que, sob a chefia de Snowball, a Quinta dos Animais teria um destino pouco diferente daquele que lhe foi reservado com Napoleão ao comando, uma vez que o mesmo acabaria por fazer o que fosse necessário para salvaguardar o seu poder.

Mas será, então, que este modelo social, o Animalismo, jamais poderia ser implementado sem que se convertesse numa tirania? Bem, tudo o que sei é que o momento que ditou o destino da quinta foi aquele em que os animais abdicaram dos seus direitos, optando por procurar um líder supremo que tomasse todas as decisões por eles. A disputa a dois, entre Napoleão e Snowball, dava sinais do que estava por vir.

Confesso que, por conhecer poucos detalhes acerca da vida de Leon Trotsky, sinto-me pouco à vontade para explicitar os paralelos entre o revolucionário bolchevique e o porco Snowball. Contudo, a semelhança mais óbvia está relacionada ao facto de ambos terem sido “eliminados” por rivais frios e implacáveis. Enquanto Napoleão selou o seu poder ao expulsar Snowball da quinta, recorrendo ao seu exército de cães, Trotsky foi uma voz tão ativa na oposição a Stalin que acabou por ser deportado da União Soviética, tendo vindo a ser assassinado, no México, por ordem de Stalin.

Numa revolução, ganha sempre o mais louco (ou, se preferirmos, o mais extremo).


Como ser um tirano

Em 2021, a Netflix estreou a série “Como ser um tirano”, que explora as artimanhas usadas pelos mais impiedosos líderes autocratas do século XX, desde Hitler à dinastia norte-coreana Kim, para dominar as massas. Se Napoleão viu ou não a série, essa é uma pergunta à qual não posso responder. No entanto, há que dar-lhe o merecido mérito, já que aplicou todos os seus princípios com maestria.

De forma a criar condições para instaurar, conforme desejava, uma ditadura, Napoleão começou por reunir um grupo de cães, que atuaram, no decorrer da narrativa, como a sua polícia secreta. Este poder militar, que é essencial para qualquer ditador, foi a base para a tomada violenta do poder.

Assim que adquiriu controle sobre a quinta, Napoleão impôs o fim dos debates semanais, a fim de solidificar a sua supremacia. Um grupo de quatro jovens porcos não apreciou esta decisão, mas foi imediatamente silenciado pelos horrorosos rosnares dos cães - uma demonstração da autoridade que se formava em torno do Líder. Restringiu também os direitos dos seus cidadãos, anunciando que as decisões da quinta seriam apenas referentes a um comité de porcos (e não a todos os animais).

A demonstração de autoridade não se ficou pelo mero silenciamento dos opositores: seguiram-se as brutais execuções. Durante a história, catorze animais foram condenados à morte: quatro porcos (os mesmos que contestaram o fim dos debates), seis galinhas, três ovelhas e um ganso.

Além da ajuda de Snowball, o seu fiel ministro de propaganda que se encarregava de exibir dados e estatísticas manipuladas aos animais, Napoleão introduziu, de forma astuta, outras três estratégias: incentivou o culto à sua pessoa, obrigando os animais a tratarem-no por “nosso líder, camarada Napoleão” e fazendo soar, sempre que possível, o poema escrito em sua honra; responsabilizou-se pela educação dos jovens porcos, instruindo-os, conforme consta no livro, a não socializarem com animais de outras espécies (a importância que Napoleão atribuía à construção de uma nova sociedade, assente nos ideais que a ele lhe eram mais favoráveis, fica patente no modo como decidiu, de forma independente, educar os pequenos porcos, e como, nos anos subsequentes, procurou integrar na quinta animais trabalhadores, mas pouco inteligentes), e cuidadosamente manipulou a imagem que a quinta passava para o exterior, através do Sr. Wyhmper - preocupação essa que não é propriamente incomum no universo dos ditadores. Talvez a ditadura mais infame até seja aquela que não parece uma ditadura.

Apesar de Napoleão corresponder a uma descarada representação de Stalin, o mesmo alberga traços comuns a muitos outros ditadores, o que comprova o aparente “código da tirania”. Segundo a tal série da Netflix que mencionei, estes são os seis passos para atingir o domínio supremo:

  1.  Conquistar o poder
  2.  Destruir os rivais
  3.  Reinar com horror
  4.  Controlar a verdade
  5.  Criar uma nova sociedade
  6.  Governar para sempre

Serão as semelhanças apenas pura coincidência?


Squealer e Molotov

“O Triunfo dos Porcos” é o palco por onde Orwell faz desfilar toda a sua brilhante sátira; e esta incorpora-se, sobretudo, no discurso do porco Squealer.

De entre as suas principais características, as que a todos mais ressaltavam eram o seu peso e o seu nítido dom para a oratória. O correspondente alegórico de Squealer, na mente de Orwell, era um e apenas um: Vyacheslav Molotov, ministro das Relações Exteriores na União Soviética.

Ao contrário de Squealer, cujo posicionamento “político” era raro antes da tomada de poder de Napoleão, Molotov sempre se tratara de um efusivo bolchevique e adepto da ideologia marxista. Desde cedo na sua carreira política, “agarrou-se” a Stalin, parecendo que o via quase como uma figura paternal e divina. Manteve-se fiel ao mesmo durante o seu longo período de regia na URSS, continuando a defender a sua reputação mesmo após a sua morte. Como ministro das Relações Exteriores, atuou, na verdade, como o principal propagandista do regime. Apoiou Stalin na consolidação do seu poder, tendo inclusive contribuído no "Grande Expurgo”, assinando 373 listas de execuções nesta brutal campanha de repressão política levada a cabo pelo líder do regime. A tal lealdade a Stalin que para Molotov era tão importante (ainda que, a certo ponto, Stalin tenha vindo a criticar Molotov em público e o tenha expulsado do governo) fez com que Molotov tenha sido, a certo ponto, expulso do Partido Comunista, uma vez que não ia de encontro com os ideais de destalinização promovidos pelo presidente Nikita Khrushchev.

Resumindo, Molotov (Squealer) ajudou Stalin (Napoleão) a consolidar o seu governo tirano e corrupto na URSS (Quinta dos Animais), manipulando as massas (animais).

As mentiras contadas por Squealer aos animais, através dos seus discursos manipuladores, são das minhas partes favoritas desta obra. Através deles, Orwell satiriza a forma como Molotov (e todos os propagandistas da sua laia) fazia o povo “de burro”, como é costume dizer-se. Neste caso, é Squealer quem faz “de burros” os animais, e as coisas que diz, como “Será que não foi tudo um sonho?”, além de cómicas, são uma clara amostra da sátira que está na base desta fantástica obra. Exemplos destes discursos seriam demasiados para aqui inclui-los, mas a leitura rápida deste livro brinda-nos com variadíssimos destes excertos de genialidade por parte do autor.


O místico Benjamim e o ceticismo de Orwell 

Apesar de a maioria das alegorias presentes nesta história remeterem a figuras sociais e políticas, Orwell não foi capaz de resistir àquele que é um dos habituais vícios dos escritores: inserir-se a eles próprios nos seus contos. Contudo, Orwell não o fez por puro capricho, mas para defender a forma como cada indivíduo deve encarar a política.

O burro Benjamim era um cético que vivia num seio de animais que transpiravam otimismo e ingenuidade. O mesmo se aplica a Orwell, que mantinha uma posição de ceticismo numa sociedade tão repleta de fanatismo político. Benjamim não acreditava em Snowball nem em Napoleão, muito menos em Squealer. Contudo, mantinha-se em silêncio (para poupar a sua vida, provavelmente). Tirando o silêncio, que certamente não é benéfico (mas também é uma natural consequência da repressão), os restantes aspetos da postura de Benjamim representam a postura de questionamento que cada um de nós deve adotar, sem que nos deixemos cair em encantos por um potencial Salvador da Pátria. Afinal de contas, é Benjamim que nos relembra que “A vida continuar como sempre – isto é, mal”. Talvez seja um exagero, mas a verdade é que trocas de liderança nunca geram efeitos milagrosos.

Quererá dizer Orwell, então, que não devemos acreditar em político algum? Não, Orwell apenas apela a que vejamos os políticos como aquilo que eles são e precisam: políticos não precisam de fãs, mas sim de eleitores. Aliás, políticos não devem ter fãs. É essa idolatria que, como a História bem nos ensina, está na origem do totalitarismo e do obscurantismo social. É sempre importante ter em conta que os políticos nunca trabalham por pro bono. Aliás, se não tivessem nada a ganhar, pessoalmente, com a sua vida política, não recorreriam constantemente a populismos e campanhas de marketing (que, por vezes, até chegam a beirar o ridículo) com vista a vencer eleições. Como um pensador uma vez disse, “A primeira prioridade de um político é ser eleito, a segunda é ser reeleito, e a terceira, seja lá qual for, é muito menos prioritária do que as primeiras duas”. Por isso, é nosso dever encarar os homens e mulheres da política com uma postura crítica.

Orwell era adepto do socialismo, o que contradiz a crença daqueles que acham que “O Triunfo dos Porcos” se trata de uma crítica ao modelo socialista. No entanto, apenas apoiava o socialismo democrático, condenando firmemente a falta de democracia e não se deixando cair nas graças da União Soviética, a primeira nação com uma organização social baseada nos ideais de Marx, dos quais Orwell era adepto, já que carecia da democracia e liberdade que o autor tanto defendia. A mesma frieza e ceticismo não se aplicou a outros pensadores socialistas, como Pablo Neruda, que taparam os olhos às atrocidades que na URSS eram feitas conta a dignidade humana, optando por exaltar o regime.

A forma como George Orwell imprimiu o seu ceticismo na figura do burro Benjamim valeu-lhe, no seu ciclo de amigos mais próximos, a alcunha de “burro George”, em referência a essa personagem. Sem dúvida, a sua postura de pensamento crítico e o seu hábito de encarar a política com o cérebro e não com o coração devem servir de exemplo para todos nós.


Conclusões assustadoras

O seguinte excerto das páginas 139 e 140 é um sumário perfeito do destino da Quinta dos Animais (e da URSS, mas esse já conhecíamos):

De alguma forma parecia que a quinta enriquecera sem que tivesse enriquecido os animais – exceto, é claro, os porcos e os cães. Talvez porque houvesse tantos porcos e tantos cães. Não é que essas criaturas não trabalhassem, faziam-no a seu modo. Squealer nunca se cansava de explicar que havia um trabalho interminável na supervisão e organização da quinta. (…) Por exemplo, Squealer disse-lhes que os porcos gastavam muito tempo todos os dias em coisas misteriosas chamadas “arquivos”, “relatórios”, “minutas” e “memorandos”. Grandes folhas de papel tinham de ser preenchidas e logo que estavam cheias eram queimadas na fornalha. Isto era da mais alta importância para o bem-estar de todos, disse Squealer. No entanto, nem os porcos nem os cães produziam alimentos com o seu próprio esforço; e havia muitos deles e todos com bom apetite. Quanto aos outros, tanto quanto eles sabiam, a sua vida não mudara. Tinham geralmente fome, dormiam na palha, bebiam no tanque, trabalhavam no campo; no inverno sofriam o incómodo do frio e no verão o das moscas.

De forma breve, este excerto ilustra a evolução destes dois regimes “irmãos” (um ficcional, o outro real). No entanto, nem foi este excerto que mais me impressionou. Um fenómeno que é possível testemunhar ao longo da leitura do livro é a forma como, no início da história, o autor fazia uso da palavra “animais” para se referir a todos os animais da quinta. Contudo, a ascensão dos porcos fez com que, a certo ponto da narrativa, o autor passasse a referir-se a eles como uma espécie à parte, utilizando, geralmente, a palavra “animais” quando pretendia aludir a todos os animais, à exceção dos porcos. Este fenómeno foi, provavelmente, natural (e não intencional), mas não deixa de ser espantoso assim que se repara nele (e é uma prova de que, de facto, todos os animais eram iguais, mas alguns eram mais iguais do que outros).


O visualismo de Orwell

George Orwell defendia que a escrita devia ser simples e direta. O foco deveria estar em transmitir uma mensagem de forma a que todos a compreendessem e não em fazer uso de palavras “caras” apenas para fins estilísticos. No seu ensaio “Política e Língua Inglesa”, escreveu aquelas que considerava ser as seis máximas para qualquer escritor:

  1.  Nunca use uma metáfora, símile ou outra figura de linguagem que está habituado a ver impressa.
  2.  Nunca use uma palavra longa onde uma curta servirá.
  3.  Se for possível cortar uma palavra, corte-a sempre.
  4.  Nunca use o passivo onde pode usar o ativo.
  5.  Nunca use uma frase estrangeira, uma palavra científica ou uma gíria se puder pensar num equivalente em inglês do dia-a-dia.
  6.  Viole qualquer uma destas regras antes de dizer algo completamente bárbaro.

Para Orwell, usar palavras longas onde curtas servem era mania de político. Daí ter destacado tantas vezes a importância da clareza da escrita, que é um pilar para a sua franqueza e honestidade.

Outro dos aspetos relevantes do estilo deste autor consiste no visualismo narrativo empregue nas suas obras, incluindo em “O Triunfo dos Porcos”. Este recurso é, talvez, o grande responsável por proporcionar o drama e a tragédia que tanto enriquecem os romances deste autor. Ler a página final de “O Triunfo dos Porcos”, em que os animais observam da janela a transformação nas caras dos porcos, é como estar a ver um filme. O drama que a leitura dessa cena proporciona não advém apenas do facto de ser a última de todo o livro, mas também (e sobretudo) da forma como o autor a descreve.

Poderia, com muito gosto, mencionar a cena final de “1984” ou até as desgastantes cenas de tortura, que, na minha opinião, molestam mais o leitor no livro do que no próprio filme, o que apenas reforça o que tenho vindo a testar destacar.

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